sábado, 23 de julho de 2011

Poema nº 44 - Não é só te querer - Emiliano Perneta

Não é só, não é só te querer, porém tudo
Que é teu, ó girassol girando sobre mim,
Com sorrisos onde há seduções de veludo,
Atrações de luar e vozes dum jardim...

Sonho que me faz mal, tortura onde me iludo,
Cruel inquietação, ânsia que não tem fim,
Ó delírio de ver palácios com escudo,
Reinos antigos com torreões de marfim!

Gestos lindos e vãos do que já foi, querida,
Graça do que findou, essência e flor da vida,
Origens afinal secretas do teu eu...

Quem me dera beijar tudo isso que me alegra,
No meio da nudez desse infinito Céu,
Desse Ródano Azul, dessa Floresta Negra!

Poema nº 43 - Medo do infinito - Emiliano Perneta

Sobre a montanha estava em certo dia,
Era quase ao morrer do sol...defronte,
Dos lados, aos meus olhos se estendia
A vastidão do lúgubre horizonte.

Infinito aos meus pés, tremendo, eu via,
Infinito por sobre a minha fronte,
E a Verdade a fugir-me à luz sombria,
À pavorosa luz do sol poente...

Súbito um medo veio-me...esmagado
Até quase à loucura deslumbrado,
Fico, imóvel, suspenso, aflito, aflito...

Que não há medo que enlouqueça tanto,
Como a indizível contorção de espanto,
O extraodinário Medo do infinito!

Poema nº 42 - Tributo a J. G. Rosa - Manoel de Barros

Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J.G.Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.

Poema nº 41 - A ciência pode classificar e nomear - Manoel de Barros


A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um 
sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
existem
nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.

Poema nº 40 - Eu não vou perturbar a paz - Manoel de Barros

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.

domingo, 17 de julho de 2011

Poema nº 39 - Das Pedras - Cora Coralina



Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

Poema nº 38 - Ausência - Vinícius de Moraes

 Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Rio de Janeiro, 1935

Poema nº 37 - A rosa de Hiroxima - Vinícius de Moraes

 Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Poema nº 36 - Soneto de fidelidade - Vinícius de Moraes



De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Estoril - Portugal, 10.1939

Poema nº 35 - Soneto de separação - Vinícius de Moraes

 De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.






Oceano Atlântico, a bordo do
Highland Patriot, a caminho da
                                         Inglaterra, 09.1938

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Poema nº 34 - Eu - Paulo Leminski


eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura
um olhar que demora
de dentro de meu centro
este poema me olha

Poema nº 33 - Sonhar - Helena Kolody


Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço,
Num vôo poderoso e audaz da fantasia.


Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante paço
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.

É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar, constantemente, o olhar ao céu profundo.

Sonhar é ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.

Poema nº 32 - Antes - Helena Kolody

Antes que desça a noite,
imprimir na retina
os rostos amados,
o sol
as cores,
o céu de outono
e os jardins da primavera.

Inundar de sons
de vozes
e de música eterna
os ouvidos
antes que os atinja
a maré do silêncio.

Conquistar
os pontos culminantes
da vida,
antes que se esgote
o prazo de permanência
em seu território sagrado.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

poema nº 31 - No silêncio dos Olhos - Saramago


 Em que língua se diz, em que nação, 
Em que outra humanidade se aprendeu 
A palavra que ordene a confusão 
Que neste remoinho  se teceu? 
Que murmúrio de vento, que dourados 
Cantos de ave pousada em altos ramos 
Dirão, em som, as coisas que, calados, 
No silêncio dos olhos confessamos?

Poema nº 30 - Maiakovski

  Não acabarão com o amor, 
                              nem as rusgas, 
                              nem a distância. 
                              Está provado, 
                              pensado 
                              verificado. 
                              Aqui levanto solene 
                              minha estrofe de mil dedos 
                              e faço o juramento: 
                              Amo 
                              firme 
                              fiel 
                              e verdadeiramente. 

Poema nº 29 - A Música da Morte - Cruz e Souza

 A Música da Morte, a nebulosa,
estranha, imensa musica sombria,
passa a tremer pela minh’alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa…
 
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
letes sinistro e torvo da agonia,
recresce a lanciante sinfonia,
sobe, numa volúpia dolorosa…
 
Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremensa, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina…
 
E alucinando e em trevas delirando,
como um ópio letal, vertiginando,
os meus nervos, letárgica, fascina…
 

Poema - nº 28 - The Raven - Edgar Allan Poe

Once upon  a midnight dreary , while I pondered, weak and weary,
Over many a  quaint  and curious volume of forgotten lore,
While I nodded , nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
"'’Tis  some visitor", I muttered, "tapping at my chamber door-
-              Only this and nothing more."

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought  its ghost  upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; vainly I had sought to borrow
From my book surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore,
-For the rare  and radiant maiden whom the angels name Lenore
                -Nameless  here for evermore.

And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that  now, to still  the beating of my heart, I stood repeating:
"'’Tis some visitor entreating entrance at my chamber door –
Some late visitor entreating entrance at my chamber door -;
- This it is and nothing more."

Presently  my soul grew stronger: hesitating then no longer,
"Sir", said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce  was sure I heard you"- here I opened wide the door –
                Darkness there and nothing more.

Deep into that darkness peering , long  I stood there, wondering, fearing,
Doubting , dreaming dreams no mortals ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness  gave no token
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore!"
This I whispered, and an echo murmured back the word, "Lenore!"
                Merely this and nothing more.

Back into the chamber turning , all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping, something louder than before.
"Surely", said I, "surely that is something at my window lattice ;
Let me  see, then, what thereat  is, and this mystery explore, -
Let my heart be still a moment and this mystery explore –
                'Tis the wind and nothing more."

Open here I flung  the shutter , when , with many a3 flirt  and flutter ,
In there stepped  a stately  Raven  of the saintly  days of yore .
Not the least obeisance made he, not a minute stopped or stayed he,
But, with mien  of lord or lady perched above my chamber door –
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door –
                Perched and sat , and nothing more.

Then, this ebony bird beguiling  my sad fancy  into smiling,
By the grave  and stern  decorum of the countenance it wore ,
"Though thy  crest be shorn  and shaven , thou", I said, "art  sure no craven ,
Ghastly , grim , and ancient Raven, wandering from the nightly shore :
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
                Quoth  the Raven, "Nevermore"

Much I marvelled this ungainly  fowl  to hear discourse so plainly ,
Though its answer little meaning, little relevancy bore ;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed  with seeing bird above his chamber door –
Bird or beast  upon the sculptured bust above his chamber door –
                With such name as "Nevermore".

But the Raven, sitting lonely on that placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour .
Nothing farther then he uttered, not a feather then he fluttered28;
Till  I scarcely more than muttered, "Other friends have flown  before:
On the morrow  he will leave me, as my Hopes have flown before."
                Then the bird said, "Nevermore".

Startled  at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless", said I, "what it utters is its only stock  and store,
Caught from some unhappy master whom  unmerciful Disaster
Followed  fast and followed faster till his songs one burden  bore ,
Till the dirges  of his Hope that melancholy  burden bore
                Of 'Never- nevermore'."

But the Raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight  I wheeled  a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking , I betook  myself to linking
Fancy unto fancy , thinking what this ominous bird of yore,
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
                Meant in croaking "Nevermore".

This I sat engaged in guessing , but no syllabe expressing
To the fowl, whose fiery eyes now burned into my "bosom's" core ;
This and more I sat divining , with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining  that the lamplight gloated  o'er ,
But whose  velvet violet lining with the lamplight gloating o'er,
                She shall press, ah, nevermore!

Then, methought , the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by seraphim whose foot-falls tinkled  on the tufted  floor.
"Wretch", I cried, "thy41 God hath  lent thee  - by these angels he hath sent thee
Respite  - respite and nepenthe  from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!"
                Quoth the Raven, "Nevermore".

"Prophet!", said I, "thing of evil! - prophet still , if bird of devil! –
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore ,
Desolate yet all undaunted , on this desert land enchanted –
On this home by Horror haunted - tell me truly, I implore:
Is there - is there balm in Gilead ? - tell me - tell me, I implore!"
                Quoth the Raven, "Nevermore".

"Prophet!", said I, "thing of evil! - prophet still, if bird of devil!
By that Heaven that bends above us, by that God we both adore,
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn ,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore:
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore."
                Quoth the Raven, "Nevermore".

"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting :
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath33 spoken!
Leave my loneliness unbroken! quit the bust above my door!
Take thy41 beak from out my heart, and take thy form from off my door!"
                Quoth the Raven, "Nevermore".

And the Raven, never flitting , still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's  that is dreaming,
And the lamplight o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
                Shall be lifted - nevermore!

Poema nº 27 - Marília de Dirceu (Parte I, Lira IV) por Tomás Antônio Gonzaga

Marília, teus olhos
São réus, e culpados,
Que sofra, e que beije
Os ferros pesados
De injusto Senhor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Mal vi o teu rosto,
O sangue gelou-se,
A língua prendeu-se,
Tremi, e mudou-se
Das faces a cor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

A vista furtiva,
O riso imperfeito,
Fizeram a chaga,
Que abriste no peito,
Mais funda, e maior.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Dispus-me a servir-te;
Levava o teu gado
À fonte mais clara,
À vargem, e prado
De relva melhor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Se vinha da herdade,
Trazia dos ninhos
As aves nascidas,
Abrindo os biquinhos
De fome ou temor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Se alguém te louvava,
De gosto me enchia;
Mas sempre o ciúme
No rosto acendia
Um vivo calor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Se estavas alegre,
Dirceu se alegrava;
Se estavas sentida,
Dirceu suspirava
À força da dor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Falando com Laura,
Marília dizia;
Sorria-se aquela,
E eu conhecia
O erro de amor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Movida, Marília,
De tanta ternura,
Nos braços me deste
Da tua fé pura
Um doce penhor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Tu mesma disseste
Que tudo podia
Mudar de figura;
Mas nunca seria
Teu peito traidor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Tu já te mudaste;
E a faia frondosa,
Aonde escreveste
A jura horrorosa,
Tem todo o vigor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

Mas eu te desculpo,
Que o fado tirano
Te obriga a deixar-me;
Pois basta o meu dano
Da sorte, que for.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Poema nº 26 - Lágrimas ocultas - Florbela Espanca

 Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Poema nº 25 - Ave Maria - Olavo Bilac

Meu filho! termina o dia...
A primeira estrela brilha...
Procura a tua cartilha,
E reza a Ave Maria!

O gado volta aos currais...
O sino canta na igreja...
Pede a Deus que te proteja
E que dê vida a teus pais!

Ave Maria!... Ajoelhado,
Pede a Deus que, generoso,
Te faça justo e bondoso,
Filho bom, e homem honrado;

Que teus pais conserve aqui
Para que possas, um dia,
Pagar-lhes em alegria
O que sofreram por ti.

Reza, e procura o teu leito,
Para adormecer contente;
Dormirás tranqüilamente,
Se disseres satisfeito:

“Hoje, pratiquei o bem:
Não tive um dia vazio,
Trabalhei, não fui vadio,
E não fiz mal a ninguém.”

terça-feira, 5 de julho de 2011

Poema nº 24 - Oração do Pássaro - Frei Betto


Senhor, tornai-me louco, irremediavelmente louco
Como os poetas sem palavras para os seus poemas,
As mulheres possuídas pelo amor proibido,
Os suicidas repletos de coragem perante o medo de viver,
Os amantes que fazem do corpo a explosão da alma.

Dai-me, Senhor, o dom fascinante da loucura
Impregnado na face miserável do pobre de Assis,
Contido nos filmes dionisíacos de Fellini,
Resplandecente nas telas policrômicas de Van Gogh,
Presente na luta inglória de Lampião.

Quero a loucura explosiva, sem a amargura
Da razão ética das pessoas saciadas à noite pela TV,
Da satisfação dos funcionários fabricantes de relatórios,
Dos deveres dos padres vazios de amor,
Dos discursos políticos cegos ao futuro.

Fazei de mim, Senhor, um louco
Embriagado pelo vosso amor,
Marginalizado do rol dos homens sérios,
Para poder aprender a ciência do povo
Em núpcias com a Cruz que só a Fé entende
Como um louco a outro louco.

***

Texto de Frei Betto 

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Poema nº 23 - Anoitecer - Florbela Espanca

A luz desmaia num fulgor d’aurora,
Diz-nos adeus religiosamente…
E eu que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui… outrora…

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bênçãos de amor pra toda a gente!
E a minha alma, sombria e penitente
Soluça no infinito desta hora!

Horas tristes que vão ao meu rosário…
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho…
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive…

Florbela Espanca em A mensageira das violetas

domingo, 3 de julho de 2011

Poema nº 22 - Purgatório - Canto XI - Dante Alighieri

  
"As almas dos orgulhosos cantam o Pai Nosso, como parte da penitência que visa purificá-las através do exercício da humildade."

"Ó Padre nosso que nos Céus estás,
não circunscrito, mas em todo o amor,
que aos primos entes do teu feito dás,


louvado seja o teu Nome e Valor
por toda criatura, à qual apraz
render graças também ao teu Vapor.


Bem venha do Teu reino a nós a paz,
porque de procurá-la, se dos Céus
não vier mais, nosso engenho é incapaz.


Como, de seu querer, os anjos teus
fazem, cantando a ti, renúncia pia,
o mesmo façam os homens dos seus.


Dá-nos hoje o maná de cada dia,
que, se faltar neste deserto infido,
vi pra trás quem pra frente mais porfia.


E como nós o mal que hemos sofrido
a cada um perdoamos, tu perdoa
benigno, sem cuidar se é merecido.


Nossa virtude que preste esboroa
não experimentes co' o antigo adversário
mas dele nos liberta, que a aguilhoa.


Este rogo, Senhor, que último eu digo,
por supérfluo, não é pra o nosso bando,
mas pra os que ainda não têm o seu castigo".

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Poema nº 21 - A lição de poesia - João Cabral de Melo Neto

1.
Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2.

A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3.

A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Poema nº 20 - Precisão - Clarice Lispector


O que me tranquiliza 
é que tudo o que existe, 
existe com uma precisão absoluta. 
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete 
não transborda nem uma fração de milímetro 
além do tamanho de uma cabeça de alfinete. 
Tudo o que existe é de uma grande exatidão. 
Pena é que a maior parte do que existe 
com essa exatidão 
nos é tecnicamente invisível. 
O bom é que a verdade chega a nós 
como um sentido secreto das coisas. 
Nós terminamos adivinhando, confusos, 
a perfeição.

domingo, 26 de junho de 2011

Poema nº 19 - Ser Poeta - Florbela Espanca

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!
 
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
 
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
 
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Poema nº 18 - A Palavra mágica - Carlos Drummond de Andrade


Certa palavra dorme na sombra 
de um livro raro.

Como desencantá-la?

É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.



Vou procurá-la a vida inteira

no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.



Procuro sempre, e minha procura

ficará sendo
minha palavra.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Poema nº 17 - Canção da garoa - Mário Quintana

Em cima do meu telhado,
Pirulin lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.
.
O relógio vai bater;
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.
.
E chove sem saber por quê...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin...

Poema nº 16 - Degraus - Hermann Hesse

 Assim como as flores murcham
E a juventude cede à velhice,
Também os degraus da Vida,
A sabedoria e a virtude, a seu tempo,
Florescem e não duram eternamente.
A cada apelo da vida deve o coração
Estar pronto a despedir-se e a começar de novo,
Para, com coragem e sem lágrimas
Se dar a outras novas ligações.
Em todo o começo reside um encanto que nos
Protege e ajuda a viver.

Serenos transpunhamos o espaço após espaço,
Não nos prendendo a nenhum elo, a um lar;
Sermos corrente ou parada não quer o espírito do mundo
Mas de degrau em degrau elevar-nos e aumentar-nos.

Apenas nos habituamos a um círculo de vida,
Íntimos, ameaça-nos o torpor;
Só aquele que está pronto a partir e parte
Se furtará à paralisia dos hábitos.

Talvez também a hora da morte
Nos lance, jovens, para novos espaços,
O apelo da Vida nunca tem fim ...
Vamos, Coração, despede-te e cura-te!



Hermann Hesse, 1943

Poema nº 15 - Tortura - Florbela Espanca

 Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
— E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
— E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!